quinta-feira, setembro 02, 2010

Notas menores sobre amor - III

Marcos trabalhava até tarde em casa numas perucas que ele havia encaixado em bolas de isopor. Estalava os dedos e soltava o cronômetro. Henrique já havia notado a afobação dos braços que cortavam os cabelos dos caras mais velhos, eles pouco se davam com qualquer rosto que surgia no espelho, estavam acostumados com os seus. A mãe bateu na porta e gritou.
- Vem comer, a janta tá pronta.
- A senhora traz pra cá?
Quando ela encostou a porta, Marcos correu e rodou a chave. Foi ao armário e tirou uma sacola de fibras grossas, raspou o prato pra dentro e voltou pras perucas. Média de 20 minutos, precisava baixar pra 15.
Luciana saiu de cima de Felipe e jogou os olhos esburacados pro espelho, o rosto estava macio e calmo, mas triste. Felipe não tinha deixado marcas vermelhas nele, mas era uma tristeza aninhada, um fiozinho fino e molhado. Fazia dias que este fiozinho quase transparente mas pesado estava nos seus olhos e ela teve vontade de chorar. “Vou me queimando neles enquanto eles se refrescam, me queimo e eles se refrescam.” Ele desligou o carro duas quadras antes.
- Tô com casamento marcado.
- Acho que a gente deve parar.
- Não tô dizendo isto, tô dizendo que a gente tem de aproveitar agora porque depois vou precisar de mais desculpas pra te ver, mas quero continuar te vendo.
Ela pôs as mãos no trinco. Ele a encarava esperando uma resposta, o nariz ouriçado. Luciana sorriu um sorriso melancólico e Felipe se endireitou pondo as mãos no volante, olhando pra trás pelo retrovisor.
- Não disse o que você tava querendo dizer – respirou ela. – Só o que eu queria dizer.
Os dias no salão caíam com moleza na cabeça de Marcos. Sentia Henrique e os fregueses cada vez mais longe dos seus ouvidos, de tão longe incomodava. Não tinha só emagrecido, estava doente, isto sim, pensava o patrão vendo-o suar mesmo nos dias em que o vento se fortalecia e estalava a placa da calçada com o nome dos dois, o de Marcos bem menor.
- Você tá amarelo! O que tem?
- Nada.
Em casa Marcos tomava água pra passar a fome, enchia uma jarra de um litro na pia do banheiro, que ficava mais perto do quarto. O pai nascera estofador, dizia o velho com um fiapo de orgulho nos dentes escurecidos. Estava na mesma fábrica fazia 32 anos. Criou Marcos e cuidou da mulher com o dinheiro vindo dali, extremamente honesto, sem nenhum tipo de falcatrua, nunca fez mal pra alguém e nem exigiu beijo ou amor de Marcos e da esposa. Pediu bem pouco a eles. Comida e roupa limpa pra ela; pra ele, não ser tão preguiçoso e estudar um pouco. Marcos obedeceu. Fez o segundo grau e depois o curso de barbeiro.
- É estranho! Meu pai nunca quis que eu seguisse uma profissão, como qualquer um sonha pro seu filho. Ele dizia que eu podia fazer o que quisesse, desde que fosse alguma coisa que exigisse que eu estudasse, pra não me tornar bandido ou veado ou preguiçoso. Só sabia a que não queria que eu seguisse: a dele.
- Porque te ama, quer o melhor.
- Besteira! O velho ama mais o cachorro do que eu. É arrogância. Arrogância! A arrogância faz enxergar que o trabalho de estofador é bem pouco digno pra gente, ganha mal pra ficar comendo courvin e arriscando os dedos com os grampeadores. Mas ele continua firme. Se eu fosse pro seu lado ia ficar perturbado, eu ia acabar com a sua segurança. - Marcos balançou a cabeça e soltou uma gargalhada. - Ele acha que fez a sua parte quando o assunto é meu estudo. Me pagou um curso de barbeiro. O humor dele é espetacular!
A barriga estava doendo, e o barbeiro suava. Doía como se não tivesse sobrado mais nada dentro e ela estava enrugando, doendo, enrugando e farfalhando. Alcançou o relógio na cabeceira. Dez da noite! Doze pra ir pro trabalho e mais quatro pra ver Luciana. Abriu o criado mudo e tirou umas notas amassadas: R$ 800 e ele já tinha comprado calça de linho e camisa de algodão. O suador com as perucas funcionara. Amanhã Luciana o veria em roupas engomadas, de desodorante, os cabelos com gel repartidos e o rosto liso e corado de talco.
- Oi, boa tarde!
- Que... quero... com...prar uma cal...ça pru...ma pes...soa.
- Como se chama?
Engasgou mais olhando os dentes brilhantes. Tossiu pensando num nome.
- Mar... Mar... Mar... Mar...cela.
Luciana sorriu de novo.
- O dela não. O seu.
- Ah – disse suspirando, balançando as mãos para enxugar o suor que corria por dentro. – Pen...sei que você falava de...la... Meu no... me é Mar... Marcos.
- Prazer, Luciana.
- Muito prazer... Lu...ciana.
- É presente?
- Sim... é pre...sente.
- Que jeito ela é?
- Mais ou menos... o seu... cor...po.
- Tomara que você ache ela bonita! – disse percebendo os dedos desajeitados errando os bolsos, a boca tremelicava igual aos olhos.
- Mui... mui... muito!
Rasgou o papel antes de chegar em casa. Ela amarfanhara a calça. Marcos a beijava e mordia engolindo fiapinhos de jeans. O suor das mãos dela, os restos dos dedos entrelaçados nas fibras e ele mordia, chupava a calça.
O pai de Luciana voltou ao salão algumas semanas depois. E ele lhe cortava os quando viu Henrique se esfumaçar, ficar preto, o rosto bem largo. O dono da barbearia andava pra frente e pra trás e diminuía, a voz dele era só uma voz de alguém gritando bem longe, as mãos dele apenas uns encontrões intermitentes e estalados no rosto. Henrique não estava ali, só o som dele, o barulho dos tapas.
Na mesa de jantar o homem contou à mulher e às duas filhas sobre o desmaio do barbeiro. Henrique dissera que Marcos estava sem comer num regime esquisito. Luciana não prestava atenção, ficava rodando o garfo nos dedos se lembrando de que já fazia tempo que ela tinha se ultrapassado, fazia tempo e ninguém notara. Continuava sendo tratada do mesmo jeito pelas pessoas da loja e de casa. Até que ponto tinha mudado ou havia mudança mesmo, um pouquinho só? Pra ela ficava difícil dizer, a medida são os outros. O pai ria, gritava e batia no peito meio que engasgado, perguntando pra mãe e pras duas filhas se aquilo era decisão de homem, mas nem notava que Luciana pouco se lixava pra história dele.
- Aonde vai? - perguntou o colega de enfermaria.
- Pra casa.
- De camisola?
Marcos abriu a porta. O pai dormia na poltrona no canto da sala, a mãe assistia à novela. Olhou-o e seus olhos gritaram vermelhos.
- Meu filho! Meu filho! O que você tá fazendo?
O velho soltou um ronco.
Felipe e Rodrigo. Os dois não ligavam pra loja ou pra casa dela fazia um mês e ela se esqueceu de que eles tivessem telefone ou mesmo um rosto. Luciana tinha se ultrapassado. Felipe e Rodrigo e Luciana, cada um pro seu lado, da forma que dava e que era mais fácil pra cada um. Juliana e Evelise ficavam mais afobadas no sofá mostrando decorações de salão e penteados, vestidos e anéis pipocados de diamantes nas revistas, Luciana as servia de dia e pouco se esforçava pra imaginar o que conversavam à noite.
- O... oi! Se... se... lembra... de mim?
A pele estava marrom de novo, reluzente, os olhos claros e brilhantes.
- Olá! Desculpa, mas não me lembro – deu uma risada nervosa remexendo o álbum do cérebro e aquele rapaz de roupa simples, mas bem passada, não apareceu.
- Com...prei... uma calça aqui... um mês a...trás.
- Hum, pra você ou pra esposa?
- Pra... pra... vo...cê. Ma... Mas... comi ela...
- O quê?
- Que... que... que... ro na... morar vo... vo... cê.
Anderson escutava Luciana cantando aquela canção atrás da casa de Dona Clotilde, ele sentado nos degraus e ela do outro lado do colégio cuidando dum jardim cheio de flores alquebradas e cantando aquela canção que o fazia lembrar o avô, o pai da mãe, e ele vivia com o pai; a mãe trabalhava num escritório, o pai tinha arrumado porque sozinha ela não conseguia. Luciana cantando a canção que o avô cantava a ele, o avô pai da mãe. Nos fins de semana João o levava pra ela. Ali perdia algumas horas brincando nos ponteiros do relógio, adiantando pro pai chegar mais rápido. Mas só dava pra adiantar os seus, o pai estava longe e, adiantando os seus, aumentava o tempo que ficava com a mãe e o avô. Nem tanto a mãe, ela não tinha culpa. A culpa era do avô. Homem tosco de mãos cascudas de enxada e barba amarela de tabaco. A mãe tinha uma preguiça crônica e congênita vinda dele.
- Luciana, vou te bater de jeito agora!
João tentou, mas todos estavam a fim da forma mais difícil, a suspensão de três dias pro filho. Seus olhos chisparam sobre o nariz sangrando e o rosto arranhado de Luciana.
- Sua putinha! Tá fodida pra sempre!
A menina não afastou os ouvidos e continuou balançando os pés vendo João esmurrar o batente da sala e sair em passos retos. A boca doía, o nariz doía, as bochechas ardiam, mas os olhos estavam secos; as mãos presas nos lados da cadeira. A diretora apareceu com água, toalha e mercúrio.
- Você o quê?
- Não! – riu tristemente remexendo a toalha branca da sacristia. Fazia duas semanas que começara a frequentar aquela sala clara de móveis beges, uma mesa, duas cadeiras e um armário com vinho, hóstias e cálices. Padre Nilson, de camisa listrada e calça preta. Duas semanas e cada vez novas histórias daquela história encarquilhada e furibunda. – Eu não comi a calça. Na verdade eu mordi um pouco e tentava engolir, mas o gosto era horrível. Cheguei à conclusão de que Luciana não tinha aquele gosto amargo, como não tem mesmo.
- Mas você disse a ela! – Padre Nilson se levantou e pôs de volta a garrafa no armário, os olhos de Marcos brilharam.
- Foi força de expressão. Achei que ela ia gostar daquilo. Mulheres sempre gostam destas histórias aumentadas que a gente copia de alguém, mudando só uma coisinha aqui e outra ali. As mulheres acham elas muito românticas e era o melhor que eu podia inventar naquela hora porque não era em seu todo mentira.
- A gente é que cai na armadilha de que querer complicar tudo, meu filho – o padre desceu os olhos. – Bom, olha quem está dando conselhos! Alguém que nunca testemunhou isto na carne.
- Seja como for. A questão é que eu disse a ela.
O padre de novo se sentou na sua frente, baixou as lentes pra encará-lo, esticou os braços peludos na mesa. Percebia a curvatura e os riscos encovados perto do nariz e nas bochechas. “Quase seis anos de diferença, ele está ficando velho demais”
- Ela ficou ali me encarando. Depois me disse com calma, inventou uma história que tinha namorado e não me lembro o que mais, me pediu pra sair.
- E como vocês começaram a namorar?
- Isto foi um tempo depois, bastante tempo depois. Eu ia toda vez na frente da loja esperar ela. Teve uma vez que ela disse que ia chamar a polícia, mas não chamou. Eu inventei de dizer que era o barbeiro do seu pai, que tinha visto ela a primeira vez quando foi na barbearia pegar a moto, e ela disse que eu então devia ser mais porco que o velho porque cortava o cabelo dele. Como eu, ela nunca gostou do pai.
Marcos a pedira pra namorar igualzinho Douglas, voz intermitente e ombros inquietos, a cabeça pendida, as órbitas moles e gordurosas fugindo de lado.
- Por que você fez isso?
- Eu queria dar a calça pra você, mas você não ia aceitar. E eu queria sentir o teu gosto e você tocou nela – já não gaguejava, Douglas ficou gaguejando até o fim e Marcos parou. Mas não era gagueira e sim um toco entupindo a garganta e ele o havia cuspido. Luciana se acuou.
- É burrice! – de costas começou a dobrar umas peças que deslizavam da banca, de vez em quando erguia a cabeça pro espelho. Ele, com as mãos nos bolsos, parado, observando-a dobrar as camisas, não olhava pra bunda, Luciana notou e ficou mais leve, sentiu que aqueles olhos acariciavam suas mãos, seus braços, os beijavam, quis vê-los de novo. - Então?
- Eu é que pergunto então!
- É... você...
- Marcos, meu nome é Marcos.
- Então, Marcos!? Acho que já pode ir. Veio, disse o que queria, eu te respondi. Pode ir embora porque você já tem a resposta que te deixava gago, você vai voltar pra casa e nunca mais vai gaguejar.
- Eu desmaiei por você.
- Oh, meu Deus, quanta besteira!
- Fiquei sem comer. Sequei até desmaiar porque tinha certeza de que você não gosta de gordo.
- Vai embora, por favor.
Em frente à loja, ele esperava todas as manhãs rabiscando com pedrinhas o nome dela no banco. Luciana o via uns cem metros antes e rilhava os dentes, mas mantinha as passadas, entrava sem falar, o rosto marcado num sorriso sardônico e embotado. Ele ficava ali até as 15 pras dez, dizia alguma coisa que ela não conseguia escutar e se levantava; ela se escondia na porta pra olhar as pernas desengonçadas na calça social pela Avenida de calçadas e fachadas imponentes e ocas, indo pra barbearia.
Casaram-se cinco meses mais tarde. Ele continuava trabalhando na barbearia e ela, na loja. Moravam numa casa de uma água que tinha na frente uma oficina pra aparelhos eletrônicos. A vida andava como uma folha que o vento calmo toca. Marcos pensava em crianças; Luciana, em como os anos tiraram seu pijama, dando um avental escuro e lúgubre, o avental que ganhou na ultrapassagem. Quando a pediu em casamento, eles nem tinham começado a namorar. Estavam conversando no banco em frente à loja e ela olhava os carros descendo a Avenida cedo, indo pra Maracanã, pras fábricas. Rodas claras e reluzentes. Um beijo e umas voltas na época de colégio poderiam ter lhe dado a resignação necessária quando ainda havia pouco a se cortar, quase nada.
- Padre, me ajuda! Fala pra Deus que eu to sofrendo, diz pra Ele me confortar.
- O que Deus pode fazer meu filho? Sua dor é profana!
Padre Nilson tinha na frente uma criança que descobrira as mentiras dos pais e chorava num mundo de pessoas adultas desesperadas. 

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